O Corpo de Deus em Penafiel | A Bicha Serpe

A serpe ou bicha serpe representa o Dragão, símbolo do mal, a que se refere o Apocalipse de S.João (12, 3-4); e que tem raízes no antigo testamento, quando Daniel matou o dragão (símbolo do demónio), que os babilónios adoravam.


Na nossa terra, ainda em tempos de Arrifana de Sousa, no último quartel do Século XVII, a serpe apresentava-se, na secular procissão do Corpo de Deus, com a forma de um dragão de grande bojo de invulgar informidade, coberto de um pano verde pintado de escamas, com cabeça de madeira de comprida bocarra, de onde lhe saía uma língua bifida de cor de fogo. Era puxada por uma corda pelo juiz ou mordomo, que assim a levava de rastos, à frente da procissão, ao longo das ruas do povoado.
Depois desta primeira invenção, apareceu uma segunda, a partir de 1705, em que a bicha serpe surge vestida toda de um pano pintado com escamas e asas. Aquando desta transformação cosmética, em que começou a ter asas, as silvas passaram para um pequeno molho simbólico na cauda. A fictícia e horrenda alimária começou então a ser movida por rapazotes que se escondiam dentro do seu descomunal bojo, de modo que a fassão bem manear pelas ruas de procissão. Mas o costume das silvas acabou finalmente por desaparecer, devido aos transtornos e incomodidades que as mesmas, amiúde geradoras de quezílias, causavam entre as muitas gentes que, respeitosamente, assistiam à passagem da função pelas estreitas ruas da parte velha do burgo.

E, no decurso de duzentos longos anos, assim se conservou a tradição da velha e medonha bicha, que chegava a ser número isolado no programa dos festejos populares (no alvorecer do século XX, ao meio-dia da véspera do Corpo de Deus, ainda era costume ver-se o espectáculo da bicha serpe, colocada no átrio do palácio do município, a espreitar pela porta, arrogante e ameaçadora, com o seu juiz espalhafatosamente fardado, fazendo guarda ao descompassado mostrengo). Contudo, cerca do final da década de trinta, caiu em desuso, tendo desaparecido do programa oficial das festas e deixado de figurar no cortejo profano da procissão.

Mas volta de novo a aparecer, no ano de 1989, com uma moderna e última invenção, que é a actual. 
Agora, o monstro, que permanece alado, é impelido por um pequeno tractor que se encontra no interior do seu desconforme corpo bojudo- o que acaba por ser uma consequência natural e mesmo uma imagem de marca destes nossos tempos mecanizados. Igual a si própria resta a figura ancestral e grotesca do mordomo ou juiz da serpe, que continua a apresentar-se fardado à século XVIII, de bicorne e espadagão desembainhado, simulando segurar e dominar, com um cadeado de arame e com as suas momices, a fantasmagórica e insólita animália.

E assim se reatou, e ainda bem, uma vetusta tradição da nossa terra, que esteve na iminência de se perder, não fora a vontade esclarecida e a firme determinação das mais recentes comissões organizadoras das festas do Corpo de Deus e da Cidade de Penafiel.

Joaquim José Mendes in "Dias Festivos- O Corpo de Deus em Penafiel "- cadernos do museu.

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